3 de janeiro de 2007

MURIEL

Às vezes se te lembras procurava-te retinha-te esgotava-te e se te não perdia era só por haver-te já perdido ao encontrar-te Nada no fundo tinha que dizer-te e para ver-te verdadeiramente e na tua visão me comprazer indispensável era evitar ter-te Era tudo tão simples quando te esperava tão disponível como então eu estava Mas hoje há os papéis há as voltas dar há gente à minha volta há a gravata Misturei muitas coisas com a tua imagem Tu és a mesma mas nem imaginas como mudou aquele que te esperava Tu sabes como era se soubesses como é Numa vida tão curta mudei tanto que é com certo espanto que no espelho da manhã distraído diviso a cara que me resta depois de tudo quanto o tempo me levou Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid havia as ruas as pessoas o acomodato os bares os cinemas os museus um dia vi-te e desde então madrid se porventura tem ainda para mim sentido é ser solidão que te rodeia a ti Mas o preço que pago por te ter é ter-te apenas quanto poder ver-te e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te Sou muito pobre tenho só por mim no meio destas ruas e do pão e dos jornais este sol de Janeiro e alguns amigos mais Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te Eu aprendi a ver a minha infância vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos e penso que se bach hoje nascesse em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior que esta mesma tarde num concerto ouvi teria concebido aqueles sweet hunters que esta noite vi no cinema rosales Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem E penso que se nunca a bem dizer te vejo se fosse além de ver-te sem remédio te perdia Mas eu dizia que te via aqui e acolá e quando te não via dependia do momento marcado para ver-te Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te e antes de chegares já lá estavas naquele preciso sítio combinado onde sempre chegavas sempre tarde ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses se ausente mais presente pela expectativa por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente Mas sabia e sei que um dia não virás que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste ou até se exististe ou se eu mesmo existi pois na dúvida tenho a única certeza Terá mesmo existido o sítio onde estivemos? Aquela hora certa aquele lugar? À força de o pensar penso que não Na melhor das hipóteses estou longe qualquer de nós terá talvez morrido No fundo quem nos visse àquela hora à saída do metro de serrano sensivelmente em frente daquele bar poderia pensar que éramos reais pontos materiais de referência como as árvores ou os candeeiros Talvez pensasse que naqueles encontro sem que talvez no fundo procurássemos o encontro profundo com nós mesmos haveria entre nós um verdadeiro encontro como o que apenas temos nos encontros que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes Isso era por exemplo o que me acontecia quando há anos nas manhãs de roma entre os pinheiros ainda indecisos do meu perdido parque de villa borghese eu via essa mulher e esse homem que naqueles encontros pontuais Decerto não seriam tão felizes como neles eu pois a felicidade para nós possível é sempre a que sonhamos que há nos outros Até que certo dia não sei bem Ou não passei por lá ou eles não foram nunca mais foram nunca mais passei por lá Passamos como tudo sem remédio passa e um dia decerto mesmo duvidamos dia não tão distante como nós pensamos se estivemos ali se madrid existiu Se portanto chegares tu primeiro porventura alguma vez daqui a alguns anosjunto de califórnia vinte e um que não te admires se olhares e me não vires Estarei longe talvez tenha envelhecido Terei até talvez mesmo morrido Não te deixes ficar sequer à minha espera não telefones não marques o número ele terá mudado a casa será outra Nada penses ou faças vai-te embora tu serás nessa altura jovem como agora tu serás sempre a mesma fresca jovem pura que alaga de luz todos os olhos que exibe o sossego dos antigos templos e que resiste ao tempo como a pedra que vê passar os dias um por um que contempla a sucessão de escuridão e luz e assiste ao assalto pelo sol daquele poder que pertencia à lua que transfigura em luxo o próprio lixo que tão de leve vive que nem dão por ela as parcas implacáveis para os outros que embora tudo mude nunca muda ou se mudar que se não lembre de morrer ou que enfim morra mas que não me desiluda Dizia que ao chegar se olhares e não me vires nada penses ou faças vai-te embora eu não te faço falta e não tem sentido esperares por quem talvez tenha morrido ou nem sequer talvez tenha existido. Ruy Belo ... na minha opinião, um dos poemas mais bonitos... «Poemas de Ruy Belo apresentação e selecção de Luís Miguel Cintra» Assírio & Alvim Colecção de Sons da Assírio & Alvim
Rita I.

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